Há alguns anos, lembro de um processo que eu defendia um casal, ele um pequeno industrial de calçados e ela dona de casa. Como era de hábito, e ainda hoje é comum, os dois, marido e mulher, eram sócios da empresa, empresa está montada desta forma, por não ter sido possível “arrumar” outro sócio para constar no contrato. Esta empresa, mantinha 5 funcionários, e durante uma fiscalização da fazenda estadual, a fiscalização, a partir de uma ótica absurda, autuou a empresa em um valor impossível de ser pago nem mesmo com parcelamento de 1000 vezes, e isso fosse possível. Não satisfeita com a absurda exação, ainda foram os sócios indiciados por crime contra a ordem tributária, uma vez que na época os fiscais eram obrigados a sugerir o indiciamento dos “sonegadores”.
Apesar de termos firme convicção de que o Auto de Infração não se sustentaria, nem tampouco a representação fiscal teria êxito, o resultado da imposição fiscal levou a empresa a fechar as portas e encerrar sua produção. Aprendi nesta ocasião que o que leva algum negócio ao sucesso é a disposição e fé em dias melhores, assim como a acusação fiscal leva exatamente ao desespero e à descrença no futuro.
Na realidade, o Auto de Infração foi anulado após alguns anos e a ação criminal julgada improcedente, entretanto o estrago já tinha sido feito, o verdadeiro crime sem culpado. Lembro de ter estado em uma audiência criminal com meus clientes e tenho ainda hoje na memória os dois sentados na sala de audiência com o rosto triste e envergonhados.
Lembrei deste episódio quando vi nestas últimas semanas novas normas da Receita Federal para que seus agentes representem criminalmente os contribuintes “sonegadores”. A política criminal tributária, enquanto conjunto de normas e ações destinadas a prevenir e reprimir infrações penais relacionadas ao não pagamento ou pagamento indevido de tributos, encontra seu respaldo legal na Lei nº 8.137/90, que delineia os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo.
Contudo, críticas contundentes têm sido dirigidas a essa política, argumentando que ela muitas vezes é utilizada como um mero instrumento de arrecadação fiscal, negligenciando princípios e garantias constitucionais inerentes ao Direito Penal e Tributário. Este texto abordará alguns dos fundamentos dessas críticas e por que uma reforma na política criminal tributária no Brasil se faz necessária.
Um argumento central é que a política criminal tributária transgride o princípio da proporcionalidade, pilar do Direito Penal. Este princípio postula que a pena deve ser adequada à gravidade do crime, proibindo o Estado de empregar o Direito Penal de maneira excessiva ou abusiva. No entanto, a política criminal tributária, ao criminalizar condutas que não representam ameaça séria ao bem jurídico protegido (a ordem tributária), desconsidera alternativas como sanções administrativas ou civis.
Por exemplo, a lei classifica como crime a simples falta de recolhimento do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), passível de pena de até dois anos de prisão, além de multa. Contudo, em muitas situações, a inadimplência decorre de dificuldades financeiras, desconhecimento da legislação ou discordância com a forma de cobrança do imposto, sem intenção de sonegação. Estas situações poderiam ser tratadas eficazmente por meio de medidas administrativas, parcelamento ou transação.
Adicionalmente, a legislação estabelece que o crime só é extinto com o pagamento integral do tributo, somado a juros e multa, ou mediante o parcelamento do débito. Isso implica que o contribuinte permanece sujeito a ação penal até regularizar sua dívida, um processo que pode se estender por anos ou décadas, violando a dignidade humana e a proibição constitucional de prisão por dívida.
Outro ponto de crítica é que a política criminal tributária contraria o princípio da capacidade contributiva, fundamento do Direito Tributário, que estipula que o tributo deve ser cobrado de acordo com a riqueza ou o rendimento do contribuinte, e que o Estado não pode usar o tributo de forma confiscatória ou opressiva. No entanto, a política criminal tributária, ao tratar como crime condutas que não representam uma capacidade contributiva real do contribuinte, e que podem levar à sua ruína econômica ou social, desconsidera a realidade e a justiça tributária.
Por exemplo, o caso que eu relatei no início deste texto ilustra como a política criminal tributária pode ser utilizada como uma forma de arrecadação fiscal, sem levar em conta a capacidade contributiva do contribuinte, que pode ser afetada por diversos fatores, como a conjuntura econômica, a concorrência, a demanda, etc. Além disso, esse caso mostra como a política criminal tributária pode gerar efeitos negativos para a economia e para a sociedade, como a perda de empregos, a redução da oferta de bens e serviços, a diminuição da arrecadação de outros tributos, etc.
Diante desses argumentos, defendemos que a política criminal tributária é uma violação aos princípios constitucionais que regem o Direito Penal e o Direito Tributário, e que ela é utilizada como um mero instrumento de arrecadação fiscal, sem levar em conta os direitos e os deveres dos contribuintes. Por isso, propomos uma reforma na política criminal tributária, que leve em conta os seguintes aspectos:
- A despenalização ou a descriminalização de algumas condutas tributárias, que não representam uma ofensa grave ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal Tributário, e que podem ser adequadamente sancionadas por meio de sanções administrativas ou civis.
- A revisão dos critérios de tipificação e de punição dos crimes tributários, que devem respeitar os princípios e as garantias do Direito Penal, como a legalidade, a culpabilidade, a proporcionalidade, a presunção de inocência, etc.
- A separação entre o processo administrativo tributário e o processo penal tributário, que devem respeitar a autonomia e a independência de cada esfera, mas também buscar a cooperação e a comunicação entre os órgãos envolvidos, evitando a duplicidade, a contradição ou a omissão de informações relevantes para a apuração dos fatos e a aplicação das sanções.
A valorização da prevenção e da educação fiscal, que devem ser priorizadas em relação à repressão e à punição, buscando conscientizar e orientar os contribuintes sobre seus direitos e deveres tributários, estimular a cultura da legalidade e da cidadania fiscal, e fortalecer a confiança e a cooperação entre o Fisco e os contribuintes.